Como desconstruir o preconceito linguístico nas aulas de língua portuguesa

Por  Elisangela Gusmão

7 de setembro de 2020

A sala de aula é um rico laboratório para análise de crenças e atitudes linguísticas que, muitas vezes, levam à prática de preconceitos relacionados aos falares regionais menos prestigiados. A desvalorização de nossa origem linguística e do patrimônio imaterial que ela representa tem como consequência a reprodução de uma mentalidade excludente que vem sendo praticada desde os tempos do Brasil colônia, dessa forma, nossa artigo tem como objetivo contribuir com as práticas docentes do componente curricular de Língua Portuguesa, no Ensino Básico, em seus quatro eixos: 1 – leitura/escuta; 2 – produção (escrita e multissemiótica); 3 – oralidade; 4 – análise linguística/semiótica (reflexão sobre a língua, normas-padrão e sistema de escrita), à luz dos estudos geolinguísticos e das variedades de fala ainda pouco exploradas como situações de aprendizado pelos professores de Língua Portuguesa.

A variedade linguística representa a identidade de uma população e apresenta traços importantes da história de um povo, visto que a maneira de falar de uma comunidade guarda parte do patrimônio imaterial e histórico de uma região; a partir do estudo de sua materialidade linguística é possível identificar traços da memória, dos valores, dos costumes e da vivência de grupos de falantes de comunidades nem sempre conhecidas por grande parte da sociedade. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN (2020), baseado na definição estabelecida pela UNESCO, considera patrimônio imaterial como:

Práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. O Patrimônio Imaterial é transmitido de geração em geração e constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo, assim, para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. (In< http://portal.iphan.gov.br – acesso em 06/06/2020).

Sendo a língua e suas variedades patrimônio imaterial de um povo, é necessário compreender a importância de ciências como a geolinguística ou geografia linguística no ensino da Língua Portuguesa.

Segundo Brandão (1991), a geolinguística é um campo interdisciplinar compartilhado pela linguística e a geografia, ocupa-se de estudar as línguas no seu contexto geográfico, tendo como objeto de estudo a compreensão da heterogeneidade linguística produzidas em diferentes regiões (dimensão diatópica ou espacial). Pesquisas bibliográficas nos indicam que crescente tem sido o interesse pelos estudos sobre as variações linguísticas regionais, tendo como referencial teórico o viés geolinguístico, porém, poucos são os estudos relacionados ao Ensino da Língua Portuguesa a partir de uma metodologia geolinguística.

A heterogeneidade linguística de nosso país nem sempre foi considerada como parte de nosso patrimônio cultural, visto que, historicamente, a “busca” pela homogeneidade de nosso idioma é uma triste herança de nossos antepassados. Uma “busca” que pode ser considerada, também, como perseguição contra as centenas de línguas indígenas que eram faladas no Brasil colonial, as quais foram extintas pelo diretório de 1758, assinados por Marquês de Pombal, que proibia o emprego de qualquer idioma que não fosse a Língua Portuguesa, considerada como a única oficial e de prestígio no Brasil.

Sendo assim, a Língua Portuguesa imposta por Portugal à colônia, inicialmente, sofreu forte concorrência da Língua Geral ou Nheengatu, falada, informalmente, em todo o litoral brasileiro. Consequentemente, enquanto o Português era a língua da escola, o falar educado, encontrado nas gramáticas, a Língua Geral era desprestigiada, sendo seus falantes amaçados e até mortos, quando resistiam e insistiam em empregá-la como idioma.

Segundo Soares (1998, 54), usava-se o Português na administração e todos os instrumentos jurídicos eram escritos na língua dos colonizadores. Os livros, de ficção ou científicos, também eram escritos em português, língua oficial. Assim, no século XVIII, houve um período de bilinguismo no Brasil e o idioma luso começava a receber os primeiros adstratos em solo americano.

Historicamente, a educação escolarizada iniciou-se em meados do século XVIII e se dirigia a uma pequena parte da população. Com a chegada, ao Brasil, do príncipe regente, D. João, em 1808, foram criados centros de transmissão do saber, sendo o Rio de Janeiro considerada a capital do Reino, porém, até aquele momento, os estudos linguísticos no Brasil eram, ainda, empíricos; faltava-lhes um método científico, que só começou a surgir no primeiro no século XIX.

De acordo com Soares (1998, 55), a gramática normativa continuava sendo escrita por amadores, pois, somente no final do século XIX, os ensinos de Gramática, Retórica e Poética foram substituídos pela disciplina Língua Portuguesa, baseada no estudo da gramática da língua e leitura de antologias que privilegiavam autores portugueses, considerados como modelos de boa escrita e boa fala, consequentemente, a homogeneidade linguística era o Português Padrão ou Norma Culta, desprezando-se a heterogeneidade dialetal, o que enraizou-se culturalmente no Sistema de Ensino Brasileiro e permanece como ideal, por grande parte dos brasileiros, até os dias atuais.

Porém, esse ideal de boa escrita e boa fala está sendo desconstruído a partir de pesquisas que tem como referencial teórico a geolinguística e as variedades regionais do nosso país. Prova disso é que, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, nº 9394, de 20/12/1996, em seu Art.36, estabelece que a Língua Portuguesa será encarada como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da cidadania, contemplando, assim, todas as modalidades expressivas, sem encará-las de forma privilegiada ou não.

Sendo assim, podemos afirmar que uma nova concepção de língua começou a ser delineada a partir da década de noventa, quando a LDB passou a considerar a Língua, não apenas instrumento de comunicação, mas, principalmente, enunciação, discurso, que estabelece relações de intercomunicação.

De acordo com esse novo olhar para o ensino da Língua Portuguesa, os processos de leitura e escrita passam, portanto, a ser resultantes da interação autor-texto-leitor, altera-se o papel desempenhado pelo aluno, que passa a ser ativo e construtor de suas próprias habilidades e conhecimentos, através de um processo contínuo de interação com outros receptores e com a própria língua, que funciona como código.

Mais recentemente, em 2018, a Nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC), destaca que a Língua Portuguesa tem como objetivo, não apenas o estudo das regras e normas, elas devem ser utilizadas para que, ao entendê-las, o estudante amplie sua capacidade de usar a língua ou linguagens (variedades linguísticas) em práticas situadas, tanto no que diz respeito à leitura quanto à produção.

Porém, apesar dos novos documentos que regem o Sistema de Educação Nacional apontarem para uma nova concepção de ensino da Língua Portuguesa, pesquisas recentes demonstraram que as variedade linguísticas ainda são consideradas como menos prestigiadas, normalmente, atreladas à competência e ao desempenho do professor, pois, segundo os relatos, falta-lhe domínio de conteúdo e da sala.

Outra causa seria a dificuldade do próprio aluno devido à complexidade que ele atribui à matéria ministrada em sala de aula. Outro fator a ser salientado refere-se à crença de que a língua portuguesa não será relevante para a vida futura do aluno. Tal fato pode estar atrelado ao distanciamento entre o saber escolar e o perfil socioeconômico do alunado, ou seja, a escola continua com o seu perfil inicial que tem por objetivo a manutenção de uma variedade padrão da língua (Português Padrão ou Norma Culta), um ensino distante da realidade sociocultural da maioria do alunado.

Em suma, a educação geolinguística e o conhecimento das variedades linguísticas empregadas nas diferentes regiões do Brasil oferece subsídios aos professores e pesquisadores sobre a necessidade de colocar o aluno como centro da prática pedagógica. Em outras palavras, é necessário que a escola esteja preocupada com seu papel social e que tenha por objetivo maior fazer que o aluno se torne consciente criticamente, que seja instigado a pensar, refletir, questionar e a quebrar preconceitos linguísticos enraizados desde os tempos do Brasil Colonial.

Considerar a educação geolinguística como uma ferramenta importante para o professor de Língua Portuguesa e demais componentes curriculares, não significa dizer que não se deva mais ensinar a gramatica descritiva (a descrição das regras gramaticais), porém, é fundamental contextualizar as diferentes situações de uso da língua, valorizando os diferentes idioletos ou sotaques que representam nossa identidade linguística e nossa herança cultural, por isso, ensinar geografia linguística é, também, ensinar nossos alunos a terem autoestima e respeito pelas diferenças linguística encontradas no ambiente escolar. Em tempos de intolerância, a educação geolinguística apresenta-se como uma ferramenta interdisciplinar que pode interligar diferentes identidades linguísticas na construção de uma identidade comum, identidade essa tão representativa da cultura brasileira.

Elisangela Alves Gusmão é Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela UNESP de Araraquara. Mestra em Linguística e Língua Portuguesa pela UNIFRAN. Graduada em Licenciatura em Língua Portuguesa, Literaturas e Língua Inglesa pela UNAMA. Autora de diversos livros, como o mais recente Selfie da Alma. Fundadora do projeto (LELITRALE: Leve um Livro, Traga um Leitor), Membra de importantes grupos de pesquisa como (LINBRA, GEOLINTERM). Professora do Ensino Básico e Superior.

Os artigos publicados são de responsabilidade de cada autor/a, e não representam a opinião da Educação Global.